Submissão| Michel Houellebecq — Uma Resenha

Thiago Holanda Dantas
5 min readFeb 15, 2023

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…tais homens com seu intento de “igualdade diante de Deus” dirigiram até agora os destinos da Europa, e até se formou uma espécie de homem diminuído, uma variedade quase ridícula, um animal de rebanho, afável, amolecido, medíocre, o moderno Europeu… (Friedrich Nietzsche | Além do Bem e do Mal)

O livro “Submissão” de Michel Houellebecq foi publicado no mesmo dia do ataque à revista francesa Charlie Hebdo, no qual 12 pessoas foram mortas. Esse evento cercou o livro de polêmicas, pois o Islã tem papel importante na história que aborda a suposta vitória do partido Islâmico nas eleições francesas para a presidencia da República e a instauração de um regime Islâmico.

Apesar desse tema ser chamariz para o romance, isso não é do que se trata esse livro. Ele trata da decadência moral e da crise de sentido do homem ocidental contemporâneo. Houellebecq descreve um homem, em seus quarenta anos, que vive uma vida de classe-média francesa, professor universitário de literatura da prestigiada Sorbonne, Paris. Vive ceticamente, ministrando suas aulas de forma desinteressada, sem paixão ou vontade. Sua principal motivação com as aulas são relacionamentos fugazes, que duram cerca de um ano com suas alunas. Come e bebe as melhores comidas nos melhores restaurantes, mas nada o satisfaz. Ele entende que isso é o que resta de sua vida e tenta viver apesar da falta de sentido.

Ele é uma espécie de último homem nietzschiano, que vive por pequenos prazeres sem nenhum arrependimento, ou o homem do subsolo de Dostoievski, mas sem ressentimentos. Este é François, que obteve seu doutorado falando sobre Joris-Karl Huysmans. Huysmans é importante para entender o caminho que o autor quis imprimir em sua obra. François é uma cópia “às avessas” de Huysmans. Este foi um escritor do final do século XIX que escreveu sobre a decadência francesa com o fim da nobreza. Escreveu “Às avessas” (1895), um romance que retratava a vaidade de uma nobreza decadente e a busca por espiritualidade em meio à decadência moral e materialista da sociedade francesa. Essa obra marcou a transformação que iria ocorrer em sua vida, pois, depois de algum tempo, Huysmans segue seu protagonista, Jean des Esseintes, e acaba se convertendo ao catolicismo. Sua jornada se inicia no naturalismo, abarca o niilismo e por último sua conversão à fé. Esses passos são falsificados por Houellebecq em “Submissão” de forma cínica. Retornado à obra, François é um homem decadente que está em crise moral e espiritual, mas não se importa, conquanto que possa continuar vivendo sua vida de funcionário público.

A aparente tranquilidade de François, um professor universitário de literatura em Paris, é abalada pela ascensão do partido de extrema-direita Frente Nacional, liderado por Marine Le Pen, e do Partido Islâmico , liderado pelo encantador Mohammed Ben-Abbes, um mulçumano moderado. Com um cenário político incerto, os partidos de centro-direita e esquerda se unem ao Partido Islâmico e este vence as eleições. Como resultado, François perde o emprego, pois não é muçulmano, mas recebe uma boa aposentadoria que lhe permite viver confortavelmente. Sua namorada judia, Myriam, emigra para Israel com medo do antissemitismo do Partido Islâmico, e os pais de François morrem.

Sozinho, desempregado e sem Myriam, François busca consolo na pornografia e em prostitutas, mas isso não é suficiente para preencher o vazio que sente. Com medo do suicídio, ele se lembra do mosteiro em Ligugé, onde seu herói literário Huysmans começou sua jornada espiritual e se tornou um membro leigo. François acredita que encontrará alguma iluminação por andar e estar no mesmo lugar da conversão de Huysmans. Após uma semana no mosteiro, François retorna a Paris sem encontrar a salvação que procurava.

Com o tempo, ele começa a considerar o que o Islã poderia oferecer: duas ou três esposas, um bom salário e um cargo prestigioso na Sorbonne, agora patrocinada pelos petrodólares árabes. O livro termina com François imaginando sua conversão ao Islã.

O livro de Houellebecq é uma reflexão sobre a França em crise, com suas instituições, como a Republica e a imprensa; seu estilo de vida decadente e a falta de fé. Ele olha, assim como Nietzsche, para o caminho que a Europa secularizada tomou. O autor vê um niilismo catapultado pela estabilidade econômica e pelos confortos conquistados pela exploração colonial. A Europa pós-cristã é descrita como hedonista, onde as pessoas buscam pequenos prazeres no próximo copo barato de vinho, na refeição exótica ou no sexo casual.

Nesse contexto de descrença e decadência, tudo acaba sendo visto como sem importância, blasé , apático e sem propósito maior. Na visão materialista do mundo, o suicídio se apresenta como uma saída louvável para uma vida sem sentido. Falando para além do romance, na França “real” o assunto tem sido discutido, mas em muitos países como Bélgica, Holanda e Espanha, já legalizaram o suicídio assistido. Houellebecq chama isso de “jeito europeu de morrer”. Nesse cenário essa seria a solução mais digna.

O autor francês propõe uma solução para essa crise francesa e europeia: O retorno à religião, mas com uma abordagem prática. Segundo Houellebecq essa seria a solução para enfrentar o niilismo europeu. Para o autor, uma sociedade não subexiste sem religião, porém o cristianismo é uma religião feminina (como Nietzsche argumentou), nesse caso, não é possível retornar a ele. Ao invés disso, o Islã é visto como uma força capaz de restaurar os valores patriarcais de uma Europa decadente. No entanto, a proposta do autor é puramente utilitária, pois não busca uma redenção, ou uma verdadeira fé em uma divindade; mas apenas aproveitar as vantagens de viver em um estado Islâmico, com suas várias mulheres submissas, o patriarcado, a moral e os costumes exteriores, como a vestimenta.

Essa volta à religião não resulta em uma iluminação espiritual ou transformação interior. Houellebecq e François, que expressa os anseios do autor, sentem nostalgia pela época da hegemonia do Cristianismo, mas François é extremamente promíscuo e imoral. No final, o que ocorre é a continuação do niilismo, agora mascarado pela religião instrumentalizada, sem a presença de uma crença verdadeira em uma divindade.

Houellebecq adota uma postura similar à de Camus em “O Estrangeiro”: ambos não se importam com a sociedade, apenas com suas próprias vidas, sem considerar as consequências de seus atos. A diferença entre os dois é que, para Mersault, nada importa, já que todos irão morrer, o que o leva à apatia; enquanto para François, nada importa desde que possa continuar desfrutando de seus privilégios, o que o leva em busca de pequenos prazeres. Esse é o beco sem saída do materialismo. Para Louis Betty, o materialismo é o destruidor da intimidade e da espiritualidade na obra de Houellebecq. Na análise de Betty, o “horror materialista” aumenta a decadência moral e social contemporânea na ficção de Houellebecq.

Em resumo, “Submissão” retrata uma visão distópica da sociedade francesa, onde a política e a religião se misturam, e o Islã é apresentado como uma possível solução para os problemas sociais e políticos, mas também como um meio de opressão e submissão.

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Thiago Holanda Dantas

Teólogo, professor, licenciatura em filosofia, missionário e escritor de blog. instagram.com/vanitasblog . Segundo colocado da 3ª Chamada Ensaios do Radar abc2